‘A cidade dos ricos e a dos pobres’: uma nova questão urbana Bernardo Secchi 17 Out 2019 O ‘Nexo’ publica trecho da tradução para o português do último livro do arquiteto, urbanista e engenheiro italiano Bernardo Secchi, morto em 2014. O autor parte da ideia de que o urbanismo tem grandes responsabilidades no agravamento de desigualdades sociais e analisa exemplos de diversos países, incluindo o Brasil. Leia, abaixo, o prefácio e parte do 1º capítulo, “A nova questão urbana”

Este livro aborda um tema que se tornou muito relevante nos últimos tempos: o contínuo crescimento e a intensificação das desigualdades sociais. Em outras palavras, o crescimento da distância entre ricos e pobres. Mas é um livro escrito por um urbanista e, embora todos concordem com o fato de que as desigualdades sociais se apresentam sobretudo nas grandes áreas urbanas, geralmente se pensa que o combate e a eliminação das desigualdades não sejam tarefas da urbanística, e sim de outras políticas econômicas e sociais que o urbanista deve compreender, ajudar e apoiar.

Defendo aqui uma hipótese um pouco diferente, ou seja, que a urbanística tem responsabilidades fortes e precisas em relação ao agravamento das desigualdades sociais e que o projeto da cidade deve ser um dos pontos de partida de toda e qualquer política que vise à eliminação ou ao combate dessas desigualdades. As responsabilidades da urbanística não se dão apenas no âmbito de valores e de consequentes definições dos objetivos que seu projeto se propõe a atingir, mas também na esfera das técnicas e dos dispositivos analíticos e projetáveis pensados para afrontar e resolver um conjunto variado de problemas inerentes ao projeto da cidade.

Alguns desses problemas, como tentarei demonstrar, foram construídos, conceitual e operacionalmente, de forma eficaz para que não fosse possível, sem entrar no mérito das intenções subjetivas de cada realizador ou idealizador, um resultado diferente do agravamento das desigualdades. Em outras palavras, o resultado foi uma insuperável distância entre a “narrativa urbanística” e a efetiva possibilidade de combater a formação e o aumento das desigualdades sociais.

Apesar da brevidade deste livro, levei um longo tempo para escrevê-lo e tive de superar diversas dificuldades. Não estou nem mesmo certo de tê-las superado de maneira satisfatória. As principais dificuldades diziam respeito à importância de tratar essas questões tendo como ponto de vista privilegiado a urbanística, buscando eliminar do texto, na medida do possível, o tipo de reflexão que tradicionalmente é elaborado em outras disciplinas, em especial na economia e na sociologia, em relação às quais a dívida da urbanística permanece significativa.

Em certo sentido, esse esforço faz parta de minha contínua busca por delinear da maneira mais clara possível, e para além das mudanças no tempo de seus traços principais, as razões e a identidade da urbanística. Uma pesquisa que teve início com minha “narrativa urbanística” e prosseguiu com a “primeira lição de urbanismo” e “a cidade do século 20”, e cujos resultados parciais expus gradualmente numa numerosa série de ensaios e artigos. A principal tese deste livro é que a desigualdade social é um dos aspectos mais relevantes do que eu chamo de “nova questão urbana”, e que essa é uma causa não secundária da crise pela qual as principais economias do planeta estão passando.

Por isso buscarei esclarecer em primeiro lugar o que quero dizer com “nova questão urbana”: por que questão e por que nova. Em seguida, tentarei explicar como, a meu ver, as relações entre economia, sociedade e território devem ser vistas e pensadas de modo diferente do tradicional: o território não é um mero reflexo da sociedade, assim como a sociedade não é um mero reflexo da economia. Riqueza e pobreza possuem um caráter pluridimensional que dificilmente pode ser reconduzido a alguns poucos e simples indicadores.

Para mostrar como esses indicadores deram vida a um conjunto evidente de injustiças espaciais que as políticas públicas, entre as quais a urbanística, deveriam e poderiam ter confrontado de maneira mais eficaz, buscarei examinar os aspectos fundamentais e a história das estratégias de distinção e exclusão praticadas pelas parcelas privilegiadas da sociedade e suas consequências tanto sobre os ricos como sobre os pobres. Normalmente, essa história é apresentada da parte dos pobres.

Acredito que seja oportuno olhá-la da parte oposta, a dos ricos. Os exemplos são inúmeros: destacarei alguns, aqueles que conheço melhor por ter procurado atenuá-los. Pois, sempre de acordo com meu modo de ver, um mundo melhor é possível apenas quando se adquire plena consciência de que as desigualdades sociais representam, precisamente, um dos aspectos mais relevantes da “nova questão urbana” e que essa é uma causa de maneira nenhuma secundária da crise que as economias do planeta atravessam.

A nova questão urbana Nas culturas ocidentais, por muito tempo a cidade foi vista como um espaço de integração social e cultural. Lugar seguro, protegido da violência da natureza e dos homens, onde os diferentes se relacionavam entre si, se conheciam, aprendiam uns com os outros e eventualmente trocavam as melhores parcelas de seus conhecimentos e cultura, em um processo de constante hibridação que produzia novas identidades, novos sujeitos e novas ideias.

Contudo, desde sempre e de diferentes maneiras, a cidade, lugar mágico, sede privilegiada de todo tipo de inovação técnica e científica, cultural e institucional, foi também uma potente máquina de distinção e separação, de marginalização e exclusão de grupos étnicos e religiosos, de atividades e profissões, de ricos e pobres. Na cidade ocidental, ricos e pobres sempre se encontraram e continuam a se encontrar, mas também, e cada vez mais, se tornam visivelmente distantes.

Grande parte dos observadores contemporâneos reconhece que em escala planetária se verificou uma possível diminuição da população em situação de pobreza extrema e uma melhoria da qualidade de vida na maior parte dos países pobres — e isso se deve provavelmente ao desenvolvimento de algumas grandes áreas do continente asiático e sul-americano —, mas também que na maioria dos países, incluindo os mais ricos, vê-se uma crescente distância entre riqueza e pobreza.

Depois de um longo período, quase um século, no qual essa distância manifestou uma clara tendência decrescente, os últimos decênios do século 20 demonstraram que ela podia crescer novamente de maneira inesperada. Bernardo Secchi (1934-2014) foi um dos mais importantes urbanistas de sua geração. Nasceu em Milão, Itália. Foi professor do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (IUAV), onde desenvolveu pesquisas teóricas e práticas, paralelas a projetos do seu escritório com a arquiteta Paola Viganò. Foi diretor do Instituto Nacional de Urbanística (INU) de 1983 a 1990 e editor da revista Urbanística de 1984 a 1990.  

A CIDADE DOS RICOS E A CIDADE DOS POBRES Bernardo Secchi Âyiné 110 páginas Lançamento em 22 de outubro de 2019

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2019/10/17/%E2%80%98A-cidade-dos-ricos-e-a-dos-pobres%E2%80%99-uma-nova-quest%C3%A3o-urbana?utm_medium=Social&utm_campaign=Echobox&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR3oc6B8NVMh1iFt-iQcYxtHds-6dxCSgks5mbqmoxv4-XqXN5V24o9Jl94#Echobox=1571356565

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