Mimimi-mados

O mimimi tornou-se generalizado. Amplificado pelas redes sociais, especialmente o Twitter, a reclamação e a queixa se transformaram num exercício nacional. Às vezes, até você entra na onda. Aprenda a espantar a lamúria e faça as pazes com a vida

Liane Alves

Apolônio Trunfas de Pandolé e Pandolé é um museólogo aposentado que afirma ter 364 anos, já que faz aniversário só de quatro em quatro anos. Apolônio, ou Popó, para os íntimos, ama o passado. É a rigidez em pessoa. Qualquer mudança o irrita: em sua casa, os móveis, o relógio da parede e as louças jamais trocam de lugar; suas roupas engomadinhas são sempre as mesmas e criticar os outros é sua atividade preferida. Seu amigo Alpamerindo é “um idiota”. É o que Popó gosta de repetir: “Alpamerindo, você é um idiota!” Em resumo, Popó, um dos mais extraordinários personagens do comediante Chico Anysio, é campeão do mimimi. Um velhinho ranheta que adora infernizar a vida de todo mundo.
“Ele é o estereótipo do birrento extrovertido. Reclama, se irrita, esperneia, dá ataques”, diz a psicóloga paulista Laura Jacinto Miller, especializada em terapia familiar e coaching. Todos nós conhecemos esse tipo de pessoa. Há jornalistas e colunistas birrentos extrovertidos, assim como diretores de cinema, atores e músicos. Síndicos, porteiros, guardas de trânsito ou professores. Enfim, podem ser encontrados em qualquer profissão embora algumas pareçam estimular mais sua presença que outras.
No Twitter, então, birrentos irritadiços se contam aos milhares. Já existe até a prática do hate-watching, isto é, de assistir televisão com ódio e depois despejar essa raiva em forma de crítica contra celebridades nos sites de relacionamento. Também há países com um número bem expressivo desses reclamões, já que a cultura de origem pode incentivar bastante esse tipo de comportamento. “Mimimi”, por exemplo, é uma expressão que nasceu na França. Franceses geralmente reclamam muito (e bufam bastante), porque já têm uma cultura que incentiva esse hábito. Mas não só eles. Os brasileiros não são diferentes. Só que aqui a coisa é um pouco mais queixosa que agressiva.
Além dos birrentos extrovertidos, há também os reclamões introvertidos: depressivos, negativos, daquele tipo que se julga sempre uma vítima, um injustiçado. “Nada parece ser bom ou suficiente para essa pessoa cronicamente insatisfeita. É um eterno descontente – e um encrenquinha”, diz Laura. Por e-mail, no Facebook ou na vida real, o reclamão introvertido põe-se a contar injustiças que sofreu e desgraças por que passou, talvez à procura de um carinho, um conforto.
Também podemos ser mais birrentos em um determinado momento e mais lamurientos em outro. O que conta no mimimi é a reclamação repetitiva, essa cronificação estéril da insatisfação, seja ela expressa exteriormente, seja internalizada em monólogos infinitos. Não estou falando do protesto justo e pontual, da reclamação que é feita em nome de uma mudança, mas daquela coisa que não se resolve e que se repete sempre, e que não é solucionada porque não enfrentamos suas causas reais. E essa reação de não enfrentamento e fuga é típica sabe de quem? Dos mi-mi-madinhos.
Muitos de nós já pertencemos ao gênero Homo mimandens. Não aprendemos a lidar com a frustração de nossos desejos porque tivemos a maioria dos nossos anseios prontamente atendidos na infância. Não crescemos numa família de dez irmãos em que aprendemos a compartilhar na marra, não lavramos a terra para conseguir comer todas as refeições, não sofremos necessidades extremas para poder dar valor e sermos gratos ao que é oferecido. “Mesmo quem não teve uma existência muito fácil pode se considerar mimado se levarmos em conta a vida que o ser humano levava até o século 19”, diz Laura. Como não lidamos bem com a frustração dos nossos desejos, queremos sempre mais e nunca nos sentimos suficientemente satisfeitos. Esbravejamos como loucos porque a tela do iPhone rachou ao meio ou porque ficamos parados no trânsito dentro de um carro com ar-condicionado e música ambiente. O mi-mi-madinho é um buraco sem fundo, um adulto infantilizado que quer ter sempre um seio para mamar à sua disposição. Se não tem, ele se irrita – ou se deprime.
Mas que não se atire a primeira pedra. Quem nunca se rendeu a um bom mimimi? No ano passado, por exemplo, perdi a chance de viajar para a Holanda. Em parte por minha culpa, em parte pela de quem fez o convite, mas a realidade é que fiquei remoendo essa história por quase três semanas. Fiquei choramingando minha falta de agressividade e iniciativa com relação ao assunto, além de imaginar os festivais que iria perder, a visita programada à vizinha Bélgica e os passeios de bicicleta pelas belas ruas de Amsterdã, capital holandesa. Coisa de mimadinha. Mas nada como uma boa conversa consigo mesmo para interromper esse interminável mimimi. Eu me disse: “Liane, vai adiantar alguma coisa reclamar? Vai mudar a rea­lidade? Então, paciência. Você já tem muitas coisas boas na vida. E pode ser que lá na frente surja outra boa oportunidade para você”. Veracidade e uma pitada de otimismo geralmente dão um jeito nessa interminável ladainha interior. Se não funcionar, não se preocupe, há outros recursos. É o que vamos ver a seguir.

Meu adorável rabugento

Se tipos assim reclamões podem ser agradáveis e divertidos na literatura, na televisão e nos filmes, conviver com eles no mundo real é mais difícil. “As pessoas eternamente insatisfeitas podem criar a sensação de que o outro é incompetente, insuficiente ou que carece de qualidades apreciáveis simplesmente porque ele não consegue satisfazê-las. Muitos saem profundamente feridos e com baixa autoestima por viver perto desse expert em rabujice”, acredita a psicóloga Laura Miller. Isto é, Woody Allen pode ser um velho ranzinza impagável no longa Para Roma, com Amor ou o rabugento senhor Scrooge, uma delícia de personagem, no célebre conto de Natal de Charles Dickens. Mas ser companheiro, colega de trabalho ou subordinado dessa gente é meio complicado. A não ser que não se ligue muito para eles, e que não se sinta muito identificado com o que eles dizem ou fazem, para nossa própria conveniência e saúde mental. Dessa maneira, pode se sair razoavelmente incólume da parceria com um reclamão.
Mas não é fácil. “Às vezes os amamos demais ou, então, temos outros interesses em ficar ao seu lado, ou mesmo as duas coisas. Mas o preço de ficar muito próximo desse tipo de gente pode ser alto”, diz Miriam Leirner, terapeuta corporal especializada no movimento. “O mau humor crônico pode ser um sintoma de quem caminha para uma depressão. A pessoa não tem coragem de encarar que está muito infeliz e triste, e que precisaria mudar bastante sua vida ou sua maneira de ser para se sentir mais pleno e feliz. Como não consegue ir até o fundo da sua dor, deprime-se. E se queixa de tudo que acontece”, diz ela. Isto é, nada nunca parece estar bom, porque realmente não está. Mas por motivos mais profundos. “Geralmente a pessoa se irrita com coisas pequenas, como o tom de voz, um atraso, uma falta menor. Porém, se isso se repete muito, a causa geralmente é outra”, afirma Miriam.
E essa condição interna de insatisfação crônica transparece no corpo. A tristeza ou a raiva que motivam a reclamação carregam um peso e ele vai estar presente corporalmente. “A perda da flexibilidade pode indicar rigidez psicológica interna, por exemplo”, diz ela. Pode-se perder também o equilíbrio e a boa postura. “Outro indício: impaciência de ouvir o outro. Ele interrompe quem está falando ou simplesmente não o escuta. Tem medo de que outro diga o motivo real da sua irritação.” O ódio contido também faz cerrar os maxilares.
Miriam acha que devolver a mobilidade corporal ajuda quem passa pela condição de tensão psicológica. “É preciso se sentir bem no corpo para estar bem emocional e psicologicamente. E esse processo de recuperação do equilíbrio interno pode começar pelos movimentos”, diz ela, convicta. Eles podem conduzir ao que mais o ser humano precisa para ser feliz.
Eu nem queria falar em meditação por aqui, mas a estabilidade conseguida com a prática ajuda nessa busca do equilíbrio. Não é fácil, mas com o tempo ela acalma a agitação da mente e nos conduz a um estado mais tranquilo. Nessa história de equilíbrio, corpo e mente têm de andar juntos.

Ela, a culpa

Outro motivo que pode nos levar à reclamação constante é a culpa. “Fomos educados a ter vergonha do prazer. Nos sentimos culpados por sermos felizes. E então desqualificamos nossa felicidade com reclamações e críticas”, diz a psicoterapeuta Irene Cardotti, de formação reichiana e hoje atuando no campo das Constelações Familiares. “Se alguém elogia nosso vestido, por exemplo, dizemos logo que foi baratinho, para quebrar o olho gordo e também diminuir nossa culpa de ter comprado um vestido caro e bonito”, exemplifica a psicoterapeuta. E assim fazemos também com nossos relacionamentos afetivos, dando pouco valor ao que uma pessoa tem de bom e considerando apenas seus defeitos, ou com relação ao nosso trabalho, levando em conta apenas o que nos incomoda, sem nos recordarmos de seus inúmeros benefícios. “Em outras palavras, ou escondemos a felicidade por medo da inveja do outro, atribuindo a ele o poder de estragar o que temos em mãos, ou a boicotamos por medo de sentir prazer”, diz Irene. Isto é, autos­sabotagem na veia.
O egoísmo, outra qualidade presente nos seres mimados, também lança um véu sobre a realidade. “Ele vive numa eterna competição interna: sempre precisa ter mais que o outro, sentir-se em vantagem”, afirma Irene. Ou seja, é comum o egoísta também ser invejoso. “Cobiçar o que o outro possui é uma forma de egoísmo. Precisamos ter porque nos sentimos vazios, carentes.” Por isso nos tornamos tão ávidos e famintos do que o outro usufrui. “O motivo é porque sentimos que não somos, ou temos, nada.” Um sério erro de avaliação.
Para Irene, o primeiro passo é reconhecer os motivos que estão por trás das reclamações costumeiras. “Assim, podemos ir ao que importa e começar a mudar esse mimimi. Essa reclamação pode ser apenas uma máscara que nos impede de enxergar”, afirma Irene. Ela garante que interromper esse padrão pode estar ao alcance de todos. “A consciência nos ajuda a ultrapassar esse limite.”

A origem do sofrimento

A primeira das quatro nobres verdades enunciadas por Buda após sua iluminação é muito simples e diz basicamente que “a vida é sofrimento”. Na verdade, a palavra usada em sânscrito é “dukkha”, termo que poderia ser mais bem traduzido como aquela angústia difusa que é pano de fundo habitual do nosso cotidiano. É algo menor que sofrimento, mais sutil, e que se refere àquela raspação contínua no peito que nos deixa eternamente infelizes. Se temos algo, temos medo de perder. Se não temos, sentimos falta. Qualquer que seja a condição, esse pano de fundo nos deixa sempre descontentes. A não ser que compreendamos que a felicidade é efêmera, que tudo é impermanente e que a mudança faz parte da vida. Isto é, as três nobres verdades restantes.
“Acontece que vivemos num tempo de mudanças que se sucedem numa velocidade vertiginosa, uma época de amores líquidos e passageiros. Não sabemos como lidar com essa rapidez em que tudo nos foge das mãos, em que nada é garantido e perene e em que tudo é descartável”, diz a psicóloga Sandra Taiar, do Laboratório Formativo do Ser, ligado à linha de Stanley Keleman e professora do Palas Athena. Mais que isso, segundo Sandra, passamos para os nossos relacionamentos os valores de uma sociedade de consumo. “Se uma relação não é exatamente aquilo que desejamos, a gente troca, devolve. Não se investe num aprofundamento maior”, ela diz. Como se fosse possível reclamar no caixa e exigir nosso tempo e dinheiro de volta, como se o afeto fosse uma mercadoria.
Também avaliamos o que somos ou temos segundo as regras de consumo. “Sempre queremos estar bem na fita. Damos muita importância ao que a sociedade julga como válido, importante ou conveniente, sem pensar em nossa profundidade e em nossos verdadeiros valores”, diz Sandra. O tempo ficou exíguo para a gente se perguntar o que vale a pena ou não. “A qualidade do tempo influi na qualidade de nossas escolhas”, afirma a psicóloga. Em vez de reclamar e trocar constantemente, uma boa ideia seria nos ouvirmos com verdade e atenção. “A sociedade de consumo, a mídia, os sites de relacionamento levam nossa atenção constantemente para fora. Há pouco tempo disponível para nos levar para dentro”, acredita. Tem um momento, portanto, em que é preciso saber desligar a televisão e não acompanhar a próxima novela. Ou dar um tempo no Facebook. Ou fazer uma terapia. Somos uma potência de vida que precisa se manifestar plenamente de corpo e alma. É saudável e desejável, portanto, abrir espaço para ela.

Uma historinha

O psiquiatra e psicoterapeuta Paulo Gaudêncio costuma contar uma história muito interessante sobre nosso hábito de reclamar. O enredo é sobre três amigos que alugaram três barcos para navegar por um rio. De repente, viram que as águas corriam cada vez mais depressa em direção a uma imensa cachoeira. O primeiro se levantou enfurecido e começou a praguejar contra quem tinha alugado os barcos por não ter sido avisado sobre o perigo. O segundo, vendo a inevitabilidade do desastre, deprimiu-se e começou a se queixar da vida, do seu azar, da sua incapacidade e fraqueza para mudar uma situação. O terceiro tomou uma iniciativa e remou o mais rápido que conseguiu para a margem. Foi o único que se salvou.
Os três tinham razão, mas só um interferiu em seu destino. Arregaçar as mangas e ajudar a mudar o que parece inevitável pode dar trabalho, requerer esforço e ser momentaneamente desagradável. Mas é a única solução possível se quisermos transformar o que vemos pela frente. “Todos temos a força e os recursos dentro de nós para efetuar essa mudança. Só precisamos reaprender a acioná-los”, diz a psicóloga Irene Cardotti. Pense nisso da próxima vez que resmungar sem agir efetivamente em direção a uma mudança.

Fonte Revista Vida Simples

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